Ainda
não era inverno. O vento gelado a despertou. Começou seu passeio pelas ruas do
bairro: descalça, pijama, pensamentos. Queria calor humano. Primeira esquina:
crianças, cola, sonhos perdidos. Sentou-se. Eles não estavam lá, eram apenas
delírios, desejos, vozes incompreensíveis, mas sentia o calor, calor que
invadiu seu corpo e derreteu sua alma. Corpo aquecido, rumo à segunda parada:
Banquete dos moradores de rua. Ouviu uma música, e guiada pelo som foi parar num beco
sem saída. Evangélicos, culto, homens desesperados de fome. Sentou-se. Os mendigos não estavam lá,
eram só pensamentos: Comer pão com mortadela no fim do culto, ganhar roupa
quentinha, cobertor, escolher a melhor ponte, forrar o papelão e desfrutar dos
presentinhos. Frio na espinha. Lembrou-se do poema que leu aos onze anos. “O
Bicho”. Manoel Bandeira.
“Vi ontem um
bicho
Na imundície do
pátio
Catando comida
entre os detritos.
Quando achava
alguma coisa,
Não examinava
nem cheirava:
Engolia com
voracidade.
O bicho não era
um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu
Deus, era um homem”
Saiu
do beco, voltou para a rua principal. Fazia duas horas que estava
caminhado. Cansaço. Sentou-se. Voltou a
sentir frio. Decidiu correr. Cruzamento. Encruzilhada. O bicho não era uma
galinha preta, era um homem: ensopado de sangue, aberto, vísceras expostas,
sofrimento. Ela sentada, descalça, pijama, mas mudou seus pensamentos, pensava
a realidade. Ela não tinha mais forças para negar tudo que estava diante dos
olhos, tudo que via da janela. Voltando para casa, briga de moradores de rua na
porta de seu lindo prédio: cacos de vidros, sangue. Tentou ajudá-los, pisou nos
cacos, furou seu pé de bailarina. Percebeu que “a realidade vai além da sua
linda imaginação”. Poça de sangue: Deles, na porta do prédio, dela na cama.
Pela manhã: não sentia mais frio, mas seu corpo estava gelado debaixo dos
lençóis. Sua alma não voltou.
Renata Foli
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