quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Alma, deixa eu ver sua alma



Ainda não era inverno. O vento gelado a despertou. Começou seu passeio pelas ruas do bairro: descalça, pijama, pensamentos. Queria calor humano. Primeira esquina: crianças, cola, sonhos perdidos. Sentou-se. Eles não estavam lá, eram apenas delírios, desejos, vozes incompreensíveis, mas sentia o calor, calor que invadiu seu corpo e derreteu sua alma. Corpo aquecido, rumo à segunda parada: Banquete dos moradores de rua. Ouviu uma música,  e guiada pelo som foi parar num beco sem saída. Evangélicos, culto, homens desesperados de fome. Sentou-se. Os mendigos não estavam lá, eram só pensamentos: Comer pão com mortadela no fim do culto, ganhar roupa quentinha, cobertor, escolher a melhor ponte, forrar o papelão e desfrutar dos presentinhos. Frio na espinha. Lembrou-se do poema que leu aos onze anos. “O Bicho”. Manoel Bandeira.
“Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem”
Saiu do beco, voltou para a rua principal. Fazia duas horas que estava caminhado.  Cansaço. Sentou-se. Voltou a sentir frio. Decidiu correr. Cruzamento. Encruzilhada. O bicho não era uma galinha preta, era um homem: ensopado de sangue, aberto, vísceras expostas, sofrimento. Ela sentada, descalça, pijama, mas mudou seus pensamentos, pensava a realidade. Ela não tinha mais forças para negar tudo que estava diante dos olhos, tudo que via da janela. Voltando para casa, briga de moradores de rua na porta de seu lindo prédio: cacos de vidros, sangue. Tentou ajudá-los, pisou nos cacos, furou seu pé de bailarina. Percebeu que “a realidade vai além da sua linda imaginação”. Poça de sangue: Deles, na porta do prédio, dela na cama. Pela manhã: não sentia mais frio, mas seu corpo estava gelado debaixo dos lençóis. Sua alma não voltou.

Renata Foli

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