segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Drummond: o soluço de vida que rebenta de cada verso é imortal



No dia 17 de agosto de 1987, há 28 anos, a luz se apagou para o poeta do Sentimento do Mundo,  Rosa do povo, do Claro Enigma... O poeta cujos poemas transitam no tempo.
Nunca esqueceremos  Carlos. O soluço de vida que rebenta de cada verso é imortal.
Carlos Drummond de Andrade nasceu em 31 de outubro de 1902, em Itabira Minas Gerais, cidade que influenciou sua obra. Seus primeiros trabalhos foram publicados no Diário de Minas. O poeta não demorou para se impor no cenário da poesia brasileira, da melhor poesia. Também foi cronista, jornalista e funcionário público.
O poema No meio do Caminho, tão conhecido, foi publicado em 1928 na Revista de Antropofagia. Em 1930 publicou o seu primeiro livro Alguma poesia, que marca o início da segunda fase do Modernismo brasileiro. O poema de abertura desse livro é Poema de sete faces, cujo eu-lírico manifesta a insatisfação com um mundo onde a desesperança sufoca. Podemos lê-lo como autobiográfico, talvez Carlos quisesse ter um retrato cuja imagem fosse desenhada em versos. Tudo indica que sim.      
 
“Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida...”


Esse poema teve “filhos”, "filhos" nascidos da intertextualidade, “filhos” nascidos também pelo amor a Drummond, cada “filho” com sua singularidade.  Torquato neto escreveu LET'S PLAY THAT, musicado por Jards Macalé;

Quando eu nasci
um anjo louco muito louco
veio ler a minha mão
não era um anjo barroco
era um anjo muito louco, torto
com asas de avião

eis que esse anjo me disse
apertando minha mão
com um sorriso entre dentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes

Já Chico Buarque escreveu Até o fim
                   
“Quando nasci veio um anjo safado
O chato dum querubim
E decretou que eu tava predestinado
A ser errado assim
Já de saída a minha estrada entortou
Mas vou até o fim...”

Em Adelia Prado temos o poema Com licença poética

“Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada...”

O próprio Poema de sete faces apresenta intertextualidade com um versículo bíblico. (Evangelho de Mateus, capítulo 27, versículo 46).

“...o que quer dizer: Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”

Drummond não escondeu sua desilusão com o mundo, um mundo que causava mal-estar, encontramos dentre as diversas temáticas: o retrato do cotidiano, os problemas sociais e políticos ,não só mundiais como os brasileiros.

A poesia de Drummond foi dividida em quatros fases. A primeira, conhecida como Gauche, é a fase da reflexão existencial, do isolamento, do individualismo. A segunda fase é a social, nesta o poeta escreveu Sentimento do Mundo(1940), José (1942) e Rosa do Povo(1945). Temos um Drummond mais participativo, o isolamento da primeira fase é substituído pelo grito que ecoa a problemática do mundo.
 A terceira fase é dividida em dois momentos, Dummond percorria novos caminhos, o da poesia filosófica e o da poesia nominal. A quarta fase (década de 70, 80), a última, é uma fase mais memorialística (Infância, família) e temas universais também são retomados. 
Para finalizar a singela homenagem,  segue um dos mais belos poemas do poeta.



Sentimento do Mundo
Tenho apenas duas mãos
e o sentimento do mundo,
mas estou cheio de escravos,
minhas lembranças escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor.

Quando me levantar, o céu
estará morto e saqueado,
eu mesmo estarei morto,
morto meu desejo, morto
o pântano sem acordes.

Os camaradas não disseram
que havia uma guerra
e era necessário
trazer fogo e alimento.
Sinto-me disperso,
anterior a fronteiras,
humildemente vos peço
que me perdoeis.

Quando os corpos passarem,
eu ficarei sozinho
desfiando a recordação
do sineiro, da viúva e do microscopista
que habitavam a barraca
e não foram encontrados
ao amanhecer

esse amanhecer

mais noite que a noite.

sexta-feira, 14 de agosto de 2015

Acreditava que não sofria preconceito racial


                                                                                     "Preta, Preta, Pretinha!"
Quando crescemos a cruel realidade bate à retina e nos deparamos com um mundo violento, da segregação racial, de pessoas preconceituosas e de muitos discursos e situações chocantes; tudo tão desumano que o olhar de uma criança não alcança.
O preconceito racial, por exemplo, temática desse texto, era algo “distante" da minha realidade, algo que eu não acreditava sofrer [mesmo sendo negra e morando numa comunidade].
Cheguei a ouvir na infância alguns depoimentos que me deixavam triste, de alguns coleguinhas de classe, mas me pareciam distantes. Não compreendia a dimensão e gravidade da questão, aquilo nunca fora assunto conversado por professores ou familiares. Achava que era uma brincadeira de mau gosto, mas brincadeira.  Pensava: não sofro isso, uma pena eles sofrerem. Isso era o máximo de reflexão. Afinal, minha ingenuidade não captava a questão, não captava o que era o preconceito racial, muito mesmo o preconceito velado
Assim, acreditava viver num país das maravilhas no que concerne o racismo e exclusão.
O fato é que agora consigo enxergar a ignorância, preconceito e a face por trás do véu de muitas pessoas. E, hoje, sem a ingenuidade da infância e adolescência posso unir todas as frases ouvidas e montar um grande quebra cabeça chamado racismo. E para completar as peças, posso somar as frases que ouço na fase adulta.
Cresci numa família onde a maioria são brancos e me tratavam assim também. Ops: Primeiro preconceito. Ao falarem mal dos cabelos das “negrinhas” da rua, na minha frente, diziam que o meu era bom. Eu não falava, mas pensava: o meu é igual.
Quanto a cor, era mais bizarro ainda, eu nunca fui negra, era a moreninha do cabelo enrolado (Com o pai negro e mãe branca, eu nasci um pouco mais clara, o que para eles era o suficiente para eu não ser negra).
 Eu não sabia que tudo isso era preconceito velado, conforme fui crescendo comecei a questionar, e diziam: “não somos preconceituosos, “gostamos dos pretos” e há pretos na família”, “já namorei preto”. É, agora entendo como são ou eram ignorantes. Poderiam ter ou não a noção disso, mas não deixavam de ser.
Uma prima começou a namorar com um negro, e mesmo havendo negros na família, ela ouviu: pense nos seus filhos como terá trabalho para pentear os cabelos dessas crianças. Na hora eu questionei o horror da frase, mas sabe como é, adultos tem sempre razão.
Chegou um momento que eu não aceitava ser considerada a moreninha, eu sou negra. Mas, o mais intrigante que não era algo apenas do núcleo familiar, percebi que as pessoas não sabiam o que era ser negro, e se sabiam, achavam que era ofensa. Debati infinitas vezes com pessoas que negavam a minha cor, e quando eu afirmava, pedindo para me encararem, diziam que eu queria assunto, pois não era negra. Alguns tiveram a petulância de mostrar pessoas consideradas negras, ou seja, tem que ser “tição” e você não é.
Poderia ficar horas aqui escrevendo as frases, mas quero acreditar que vocês não precisam de muitas descrições para perceberem o que é preconceito velado, principalmente o praticado por familiares.
Adulta, percebo que o preconceito racial está por toda a parte, velado ou não precisamos identificá-lo, não importa se é membro da família, amigo, ou alguém que acabamos de conhecer, conscientizar essas pessoas que acreditam não serem preconceituosas é primordial na luta contra o racismo.
Muitas das vezes é só ignorância, é cegueira, e precisamos fazê-las enxergar o quão idiota é esse discurso, antes que isso se impregne e torne algo consciente. Precisamos repreender as atitudes racistas com mais empenho e voracidade.
 Acredito que todos são capazes de educar, principalmente em questões sociais, raciais, humanas, etc.  Não dá para esperar que a escola faça isso, ou pais sem noção, que criam filhos preconceituosos, incapazes de respeitar o próximo.
No primeiro dia numa universidade pública, numa reunião de boas-vindas com os veteranos. Escutei de uma mulher branca, moradora da zona sul do Rio a seguinte frase: VOCÊ MORA NA BAIXADA, EM DUQUE DE CAXIAS, NÃO PARECE. SÉRIO, NÃO PARECE, É INTELIGENTE.
Contexto: aquela mulher branca numa faculdade de humanas, conversava comigo sobre literatura, música; o papo rico ia muito bem, até eu falar de onde vinha. Com muita calma, eu a enxerguei como uma criança que precisava ser educada, e a disse: Na Baixada Fluminense há pessoas maravilhosas, inteligentes, e que são capazes de fazer parte daquele lugar, tanto quanto a mocinha preconceituosa. Sim, o discurso é preconceituoso. Disse também, que como alguém que é da área de humanas, HUMANAS, pode falar daquele jeito. Expliquei o que era segregação racial. Enfim, encerramos a conversa e ela com olhos arregalados me pediu desculpas e disse que não teve a intenção. Expliquei que o preconceito muita das vezes está em pessoas que “não tem a intenção”.
Outra situação, mais atual: ouvi de um familiar de alguém que amo muito o seguinte: você é pretinha mas é muito bonita. Agora, imaginem a situação, a mulher que me disse isso é negra, negra com todos os traços. Mas, adivinhem não se considera negra. E por mais que eu tenha explicado mil vezes o que era racismo, racismo velado etc, os neurônios da pessoa não alcançaram a mensagem, e não viu nada de ofensivo na frase. E disse, que eu estava exagerando.
Em que mundo esses hipócritas vivem, respondam?  Porque eu tenho muita dificuldade de entender: É “burrice” mesmo? porque não é só ignorância. Quando alguém te explica algo importante e você continua ignorando...O  que devo pensar de você?
Por fim, acho que há casos que não tem jeito, o indivíduo é preconceituoso mesmo e ponto; não usa máscaras, e é tudo muito explícito, precisam pagar pelo crime de racismo. Mas como sou uma pessoa otimista e muito observadora, sei que há casos de preconceito velado que não passa de ignorância, o indivíduo cresceu ouvindo isso e reproduz, como uma criança, nesses casos devemos tentar usar o poder da educação. Analisar o contexto da frase e a pessoa; o cara é racista mesmo? Ou teve uma atitude racista? precisa de ajuda para entender sobre o assunto? Posso ajudá-lo? Posso tentar explicar o que é racismo, velado ou não?
Acredito que podemos fazer muita coisa, o que não podemos é ficar de braços cruzados, apenas apontando o preconceito. Conscientizar essas pessoas que acreditam não ser preconceituosas é primordial para  melhoramos a situação dos negros, principalmente os que ainda não sabem dos seus direitos, os que aceitam calados.
 Quando o indivíduo entender de fato, ele refletirá e assim poderá identificar outros discursos racistas e ajudar outras pessoas a compreenderem. Não custa tentar.
E para finalizar o singelo texto, segue um diálogo no banheiro de uma grande empresa. Onde todas as pessoas deveriam informar e refletir sobre questões sociais e raciais; onde a maioria é formado em comunicação social.
Situação: Mulher negra (Eu) diante do espelho, passando silicone nas pontas dos cachinhos. Naquele dia meu cabelo estava maravilhosamente lindo :-)
Mulher branca: Deve ser difícil cuidar disso tudo, neh? Pentear ?
Eu: Não
Mulher branca: Como você faz, lava todos os dias?
Eu: Como você faz com o seu?
Mulher branca: Lavo duas vezes por semana
Eu: Então, eu lavo três
Mulher branca: Sério?
Eu: Sim
Mulher branca: Tenho uma vizinha que a filha tem o cabelo assim, ela reclama muito, dói o braço para pentear, ela diz que é um sofrimento, e é horrível. Acho que vai cortar.
Eu: Diz a sua vizinha, que a filha dela tem cabelo, logo precisa ser lavado, condicionado, hidratado como o seu ou de qualquer outra pessoa. Se não há cuidados básicos, obviamente, qualquer cabelo ficará um pouco ou mais embolado.
Mulher branca: olhos arregalados
Eu: uma pena quando o preconceito vem da própria família, e as crianças crescem achando que ter o cabelo crespo é ruim. Tristíssimo uma mãe tão ignorante como essa.
Mulher branca: Ainda bem que eu não sou preconceituosa.
Eu. OK, boa tarde.