sexta-feira, 14 de agosto de 2015

Acreditava que não sofria preconceito racial


                                                                                     "Preta, Preta, Pretinha!"
Quando crescemos a cruel realidade bate à retina e nos deparamos com um mundo violento, da segregação racial, de pessoas preconceituosas e de muitos discursos e situações chocantes; tudo tão desumano que o olhar de uma criança não alcança.
O preconceito racial, por exemplo, temática desse texto, era algo “distante" da minha realidade, algo que eu não acreditava sofrer [mesmo sendo negra e morando numa comunidade].
Cheguei a ouvir na infância alguns depoimentos que me deixavam triste, de alguns coleguinhas de classe, mas me pareciam distantes. Não compreendia a dimensão e gravidade da questão, aquilo nunca fora assunto conversado por professores ou familiares. Achava que era uma brincadeira de mau gosto, mas brincadeira.  Pensava: não sofro isso, uma pena eles sofrerem. Isso era o máximo de reflexão. Afinal, minha ingenuidade não captava a questão, não captava o que era o preconceito racial, muito mesmo o preconceito velado
Assim, acreditava viver num país das maravilhas no que concerne o racismo e exclusão.
O fato é que agora consigo enxergar a ignorância, preconceito e a face por trás do véu de muitas pessoas. E, hoje, sem a ingenuidade da infância e adolescência posso unir todas as frases ouvidas e montar um grande quebra cabeça chamado racismo. E para completar as peças, posso somar as frases que ouço na fase adulta.
Cresci numa família onde a maioria são brancos e me tratavam assim também. Ops: Primeiro preconceito. Ao falarem mal dos cabelos das “negrinhas” da rua, na minha frente, diziam que o meu era bom. Eu não falava, mas pensava: o meu é igual.
Quanto a cor, era mais bizarro ainda, eu nunca fui negra, era a moreninha do cabelo enrolado (Com o pai negro e mãe branca, eu nasci um pouco mais clara, o que para eles era o suficiente para eu não ser negra).
 Eu não sabia que tudo isso era preconceito velado, conforme fui crescendo comecei a questionar, e diziam: “não somos preconceituosos, “gostamos dos pretos” e há pretos na família”, “já namorei preto”. É, agora entendo como são ou eram ignorantes. Poderiam ter ou não a noção disso, mas não deixavam de ser.
Uma prima começou a namorar com um negro, e mesmo havendo negros na família, ela ouviu: pense nos seus filhos como terá trabalho para pentear os cabelos dessas crianças. Na hora eu questionei o horror da frase, mas sabe como é, adultos tem sempre razão.
Chegou um momento que eu não aceitava ser considerada a moreninha, eu sou negra. Mas, o mais intrigante que não era algo apenas do núcleo familiar, percebi que as pessoas não sabiam o que era ser negro, e se sabiam, achavam que era ofensa. Debati infinitas vezes com pessoas que negavam a minha cor, e quando eu afirmava, pedindo para me encararem, diziam que eu queria assunto, pois não era negra. Alguns tiveram a petulância de mostrar pessoas consideradas negras, ou seja, tem que ser “tição” e você não é.
Poderia ficar horas aqui escrevendo as frases, mas quero acreditar que vocês não precisam de muitas descrições para perceberem o que é preconceito velado, principalmente o praticado por familiares.
Adulta, percebo que o preconceito racial está por toda a parte, velado ou não precisamos identificá-lo, não importa se é membro da família, amigo, ou alguém que acabamos de conhecer, conscientizar essas pessoas que acreditam não serem preconceituosas é primordial na luta contra o racismo.
Muitas das vezes é só ignorância, é cegueira, e precisamos fazê-las enxergar o quão idiota é esse discurso, antes que isso se impregne e torne algo consciente. Precisamos repreender as atitudes racistas com mais empenho e voracidade.
 Acredito que todos são capazes de educar, principalmente em questões sociais, raciais, humanas, etc.  Não dá para esperar que a escola faça isso, ou pais sem noção, que criam filhos preconceituosos, incapazes de respeitar o próximo.
No primeiro dia numa universidade pública, numa reunião de boas-vindas com os veteranos. Escutei de uma mulher branca, moradora da zona sul do Rio a seguinte frase: VOCÊ MORA NA BAIXADA, EM DUQUE DE CAXIAS, NÃO PARECE. SÉRIO, NÃO PARECE, É INTELIGENTE.
Contexto: aquela mulher branca numa faculdade de humanas, conversava comigo sobre literatura, música; o papo rico ia muito bem, até eu falar de onde vinha. Com muita calma, eu a enxerguei como uma criança que precisava ser educada, e a disse: Na Baixada Fluminense há pessoas maravilhosas, inteligentes, e que são capazes de fazer parte daquele lugar, tanto quanto a mocinha preconceituosa. Sim, o discurso é preconceituoso. Disse também, que como alguém que é da área de humanas, HUMANAS, pode falar daquele jeito. Expliquei o que era segregação racial. Enfim, encerramos a conversa e ela com olhos arregalados me pediu desculpas e disse que não teve a intenção. Expliquei que o preconceito muita das vezes está em pessoas que “não tem a intenção”.
Outra situação, mais atual: ouvi de um familiar de alguém que amo muito o seguinte: você é pretinha mas é muito bonita. Agora, imaginem a situação, a mulher que me disse isso é negra, negra com todos os traços. Mas, adivinhem não se considera negra. E por mais que eu tenha explicado mil vezes o que era racismo, racismo velado etc, os neurônios da pessoa não alcançaram a mensagem, e não viu nada de ofensivo na frase. E disse, que eu estava exagerando.
Em que mundo esses hipócritas vivem, respondam?  Porque eu tenho muita dificuldade de entender: É “burrice” mesmo? porque não é só ignorância. Quando alguém te explica algo importante e você continua ignorando...O  que devo pensar de você?
Por fim, acho que há casos que não tem jeito, o indivíduo é preconceituoso mesmo e ponto; não usa máscaras, e é tudo muito explícito, precisam pagar pelo crime de racismo. Mas como sou uma pessoa otimista e muito observadora, sei que há casos de preconceito velado que não passa de ignorância, o indivíduo cresceu ouvindo isso e reproduz, como uma criança, nesses casos devemos tentar usar o poder da educação. Analisar o contexto da frase e a pessoa; o cara é racista mesmo? Ou teve uma atitude racista? precisa de ajuda para entender sobre o assunto? Posso ajudá-lo? Posso tentar explicar o que é racismo, velado ou não?
Acredito que podemos fazer muita coisa, o que não podemos é ficar de braços cruzados, apenas apontando o preconceito. Conscientizar essas pessoas que acreditam não ser preconceituosas é primordial para  melhoramos a situação dos negros, principalmente os que ainda não sabem dos seus direitos, os que aceitam calados.
 Quando o indivíduo entender de fato, ele refletirá e assim poderá identificar outros discursos racistas e ajudar outras pessoas a compreenderem. Não custa tentar.
E para finalizar o singelo texto, segue um diálogo no banheiro de uma grande empresa. Onde todas as pessoas deveriam informar e refletir sobre questões sociais e raciais; onde a maioria é formado em comunicação social.
Situação: Mulher negra (Eu) diante do espelho, passando silicone nas pontas dos cachinhos. Naquele dia meu cabelo estava maravilhosamente lindo :-)
Mulher branca: Deve ser difícil cuidar disso tudo, neh? Pentear ?
Eu: Não
Mulher branca: Como você faz, lava todos os dias?
Eu: Como você faz com o seu?
Mulher branca: Lavo duas vezes por semana
Eu: Então, eu lavo três
Mulher branca: Sério?
Eu: Sim
Mulher branca: Tenho uma vizinha que a filha tem o cabelo assim, ela reclama muito, dói o braço para pentear, ela diz que é um sofrimento, e é horrível. Acho que vai cortar.
Eu: Diz a sua vizinha, que a filha dela tem cabelo, logo precisa ser lavado, condicionado, hidratado como o seu ou de qualquer outra pessoa. Se não há cuidados básicos, obviamente, qualquer cabelo ficará um pouco ou mais embolado.
Mulher branca: olhos arregalados
Eu: uma pena quando o preconceito vem da própria família, e as crianças crescem achando que ter o cabelo crespo é ruim. Tristíssimo uma mãe tão ignorante como essa.
Mulher branca: Ainda bem que eu não sou preconceituosa.
Eu. OK, boa tarde.




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