"Preta, Preta, Pretinha!"
Quando crescemos a cruel realidade bate à retina e nos deparamos com um mundo violento, da segregação racial, de pessoas preconceituosas e de muitos discursos e situações chocantes; tudo tão desumano que o olhar de uma criança não alcança.
O
preconceito racial, por exemplo, temática desse texto, era algo “distante" da
minha realidade, algo que eu não acreditava sofrer [mesmo sendo negra e morando
numa comunidade].
Cheguei
a ouvir na infância alguns depoimentos que me deixavam triste, de alguns
coleguinhas de classe, mas me pareciam distantes. Não compreendia a dimensão e
gravidade da questão, aquilo nunca fora assunto conversado por professores ou
familiares. Achava que era uma brincadeira de mau gosto, mas brincadeira. Pensava: não sofro isso, uma pena eles
sofrerem. Isso era o máximo de reflexão. Afinal, minha ingenuidade não captava
a questão, não captava o que era o preconceito racial, muito mesmo o
preconceito velado
Assim,
acreditava viver num país das maravilhas no que concerne o racismo e exclusão.
O
fato é que agora consigo enxergar a ignorância, preconceito e a face por trás
do véu de muitas pessoas. E, hoje, sem a ingenuidade da infância e adolescência
posso unir todas as frases ouvidas e montar um grande quebra cabeça chamado
racismo. E para completar as peças, posso somar as frases que ouço na fase
adulta.
Cresci
numa família onde a maioria são brancos e me tratavam assim também. Ops:
Primeiro preconceito. Ao falarem mal dos cabelos das “negrinhas” da rua, na
minha frente, diziam que o meu era bom. Eu não falava, mas pensava: o meu é
igual.
Quanto
a cor, era mais bizarro ainda, eu nunca fui negra, era a moreninha do cabelo
enrolado (Com o pai negro e mãe branca, eu nasci um pouco mais clara, o que
para eles era o suficiente para eu não ser negra).
Eu não sabia que tudo isso era preconceito
velado, conforme fui crescendo comecei a questionar, e diziam: “não somos
preconceituosos, “gostamos dos pretos” e há pretos na família”, “já namorei
preto”. É, agora entendo como são ou eram ignorantes. Poderiam ter ou não a
noção disso, mas não deixavam de ser.
Uma
prima começou a namorar com um negro, e mesmo havendo negros na família, ela
ouviu: pense nos seus filhos como terá trabalho para pentear os cabelos dessas
crianças. Na hora eu questionei o horror da frase, mas sabe como é, adultos tem
sempre razão.
Chegou
um momento que eu não aceitava ser considerada a moreninha, eu sou negra. Mas,
o mais intrigante que não era algo apenas do núcleo familiar, percebi que as
pessoas não sabiam o que era ser negro, e se sabiam, achavam que era ofensa.
Debati infinitas vezes com pessoas que negavam a minha cor, e quando eu
afirmava, pedindo para me encararem, diziam que eu queria assunto, pois não era
negra. Alguns tiveram a petulância de mostrar pessoas consideradas negras, ou
seja, tem que ser “tição” e você não é.
Poderia
ficar horas aqui escrevendo as frases, mas quero acreditar que vocês não
precisam de muitas descrições para perceberem o que é preconceito velado, principalmente
o praticado por familiares.
Adulta,
percebo que o preconceito racial está por toda a parte, velado ou não precisamos identificá-lo,
não importa se é membro da família, amigo, ou alguém que acabamos de conhecer,
conscientizar essas pessoas que acreditam não serem preconceituosas é
primordial na luta contra o racismo.
Muitas
das vezes é só ignorância, é cegueira, e precisamos fazê-las enxergar o quão
idiota é esse discurso, antes que isso se impregne e torne algo consciente.
Precisamos repreender as atitudes racistas com mais empenho e voracidade.
Acredito que todos são capazes de educar, principalmente
em questões sociais, raciais, humanas, etc. Não dá para esperar que a escola faça isso, ou
pais sem noção, que criam filhos preconceituosos, incapazes de respeitar o
próximo.
No
primeiro dia numa universidade pública, numa reunião de boas-vindas com os
veteranos. Escutei de uma mulher branca, moradora da zona sul do Rio a seguinte
frase: VOCÊ MORA NA BAIXADA, EM DUQUE DE CAXIAS, NÃO PARECE. SÉRIO, NÃO PARECE,
É INTELIGENTE.
Contexto:
aquela mulher branca numa faculdade de humanas, conversava comigo sobre
literatura, música; o papo rico ia muito bem, até eu falar de onde vinha. Com
muita calma, eu a enxerguei como uma criança que precisava ser educada, e a
disse: Na Baixada Fluminense há pessoas maravilhosas, inteligentes, e que são
capazes de fazer parte daquele lugar, tanto quanto a mocinha preconceituosa. Sim,
o discurso é preconceituoso. Disse também, que como alguém que é da área de
humanas, HUMANAS, pode falar daquele jeito. Expliquei o que era segregação
racial. Enfim, encerramos a conversa e ela com olhos arregalados me pediu
desculpas e disse que não teve a intenção. Expliquei que o preconceito muita
das vezes está em pessoas que “não tem a intenção”.
Outra
situação, mais atual: ouvi de um familiar de alguém que amo muito o seguinte:
você é pretinha mas é muito bonita. Agora, imaginem a situação, a mulher que me
disse isso é negra, negra com todos os traços. Mas, adivinhem não se considera
negra. E por mais que eu tenha explicado mil vezes o que era racismo, racismo
velado etc, os neurônios da pessoa não alcançaram a mensagem, e não viu nada de
ofensivo na frase. E disse, que eu estava exagerando.
Em
que mundo esses hipócritas vivem, respondam?
Porque eu tenho muita dificuldade de entender: É “burrice” mesmo? porque
não é só ignorância. Quando alguém te explica algo importante e você continua
ignorando...O que devo pensar de você?
Por
fim, acho que há casos que não tem jeito, o indivíduo é preconceituoso mesmo e
ponto; não usa máscaras, e é tudo muito explícito, precisam pagar pelo crime de
racismo. Mas como sou uma pessoa otimista e muito observadora, sei que há casos
de preconceito velado que não passa de ignorância, o indivíduo cresceu ouvindo
isso e reproduz, como uma criança, nesses casos devemos tentar usar o poder da
educação. Analisar o contexto da frase e a pessoa; o cara é racista mesmo? Ou teve
uma atitude racista? precisa de ajuda para entender sobre o assunto? Posso
ajudá-lo? Posso tentar explicar o que é racismo, velado ou não?
Acredito
que podemos fazer muita coisa, o que não podemos é ficar de braços cruzados,
apenas apontando o preconceito. Conscientizar essas pessoas que acreditam não
ser preconceituosas é primordial para melhoramos a situação dos
negros, principalmente os que ainda não sabem dos seus direitos, os que aceitam
calados.
Quando o indivíduo entender de fato, ele
refletirá e assim poderá identificar outros discursos racistas e ajudar outras
pessoas a compreenderem. Não custa tentar.
E
para finalizar o singelo texto, segue um diálogo no banheiro de uma grande
empresa. Onde todas as pessoas deveriam informar e refletir sobre questões
sociais e raciais; onde a maioria é formado em comunicação social.
Situação:
Mulher negra (Eu) diante do espelho, passando silicone nas pontas dos
cachinhos. Naquele dia meu cabelo estava maravilhosamente lindo :-)
Mulher
branca: Deve ser difícil cuidar disso tudo, neh? Pentear ?
Eu:
Não
Mulher
branca: Como você faz, lava todos os dias?
Eu:
Como você faz com o seu?
Mulher
branca: Lavo duas vezes por semana
Eu:
Então, eu lavo três
Mulher
branca: Sério?
Eu:
Sim
Mulher
branca: Tenho uma vizinha que a filha tem o cabelo assim, ela reclama muito,
dói o braço para pentear, ela diz que é um sofrimento, e é horrível. Acho que vai cortar.
Eu:
Diz a sua vizinha, que a filha dela tem cabelo, logo precisa ser lavado,
condicionado, hidratado como o seu ou de qualquer outra pessoa. Se não há
cuidados básicos, obviamente, qualquer cabelo ficará um pouco ou mais embolado.
Mulher
branca: olhos arregalados
Eu:
uma pena quando o preconceito vem da própria família, e as crianças crescem
achando que ter o cabelo crespo é ruim. Tristíssimo uma mãe tão ignorante como
essa.
Mulher
branca: Ainda bem que eu não sou preconceituosa.
Eu.
OK, boa tarde.
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