sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Impressões sobre "O conto da ilha desconhecida", de José Saramago



A priori, a escrita saramaguiana assusta o leitor iniciante. Conhecida pelo seu estilo único no qual notamos o uso estratégico da oralidade e a da técnica do fluxo de consciência, além de frases e períodos longos cujas regras de pontuação são transgredidas, por exemplo, vírgulas onde estariam pontos finais, supressão dos travessões nos diálogos, entre outros recursos.  Muitos desistem da leitura, mas para os que persistem a experiência estética é certa.

A reflexão sobre a experiência do autoconhecimento e sobre a relação do indivíduo e o meio social permeia o livro O conto da ilha desconhecida, de José Saramago, publicado inicialmente em 1997. A versão lida para essa pequena analise foi publicada em 1998 pela Companhia das Letras, e conta com as aquarelas de Arthur Luiz Piza.

Em O conto da ilha desconhecida, José Saramago nos apresenta um reino cujas portas são nomeadas e carregam alegorias  importantes para nossa interpretação. Já os personagens—súditos —não possuem nomes, os substantivos próprios, nesse caso, são substituídos pelas funções que esses indivíduos exercem na sociedade. Com toda sua genialidade, o autor constrói um conto cuja estrutura é muito semelhante às parábolas bíblicas, porém o leitor é convidado a navegar num mar metafórico, crítico e filosófico.

O livro conta a história de um homem singular que desejava viajar até uma ilha desconhecida—  um sonho a ser realizado, desejo latente e tão forte quanto a vida— , para tal foi ao rei e lhe pediu um barco. O monarca lhe perguntou como pode saber que essa ilha existe, já que é desconhecida. O homem insistente argumentou que assim são todas as ilhas até que alguém desembarque nelas. E nesse diálogo “simples” nos deparamos com o caráter alegórico e reflexivo da narrativa.

O período histórico retratado no livro, como puderam notar no parágrafo acima, é do absolutismo monárquico— onde o rei tinha o poder absoluto. Desta forma, Saramago faz diversas críticas à política, à sociedade e às problemáticas da época. Sendo esse o primeiro ponto apresentado. Outro ponto que podemos ressaltar no texto, o mais importante, são os aspectos existencialistas: o homem e a  procura pelo eu perdido. Sentimentos, questionamentos  e vontades que muitos perderam durante o caminho ou nunca tiveram. Numa leitura corrida, alguns leitores podem achar o texto óbvio e de frágil estrutura, mas em poucas linhas Saramago narra sobre a existência humana e vai direito ao ponto, fazendo o leitor atento entender sua metáfora maior.
Como foi dito, os personagens desse conto não carregam seus nomes, apenas suas funções e personalidades, temos assim: um homem que foi até a porta das petições pedir um barco ao rei, a mulher da limpeza que fugiu do reino pela porta das decisões, um rei que não saia da porta dos obséquios e deixava seus súditos esperando muito tempo até serem atendidos (a velha burocracia que conhecemos bem), o capitão, etc.   [ Na minha leitura o barco e a ilha também são personagens desta história].
Outro diálogo que chama atenção é o que ocorre entre o homem e a mulher, neste observamos a metáfora maior exposta pelo autor. Notem que nesta conversa não há travessões e os pontos finais das falas foram substituídos por vírgulas.
quero encontrar a ilha desconhecida, quero saber quem eu sou quando nela estiver, Não o sabes, Se não sais de ti, não chegas a saber quem és, O filósofo do rei, quando não tinha o que fazer, ia sentar-se ao pé de mim, a ver-me passajar as peúgas dos pajens, e às vezes dava-lhe para filosofar, dizia que todo o homem é uma ilha, eu, como aquilo não era comigo visto que sou mulher, não lhe dava importância, tu que achas, Que é necessário sair da ilha para ver a ilha, que não nos vemos se não saímos de nós (página 40).
Após esse diálogo, no cair da noite e quando o sono vem, algo acontece no mundo onírico do homem. A chave para o conto e para a vida do personagem. Boa leitura!

Credenciais do autor


 Nasceu em 1922, de uma família de camponeses da província do Ribatejo, em Portugal. Devido a dificuldades econômicas foi obrigado a interromper os estudos secundários, tendo a partir de então exercido diversas atividades profissionais: serralheiro mecânico, desenhista, funcionário público, editor, jornalista, entre outras. Seu primeiro livro foi publicado em 1947. A partir de 1976 passou a viver exclusivamente da literatura, primeiro como tradutor, depois como autor. Romancista, teatrólogo e poeta, em 1998 tornou-se o primeiro autor de língua portuguesa a receber o Prêmio Nobel de Literatura. Saramago faleceu em Lanzarote, nas Ilhas Canárias, em 2010. A Fundação José Saramago mantém um site sobre o autor www.josesaramago.org

domingo, 26 de junho de 2016

Crônica da semana: Cabe na palma da mão



A fila chegava à central do Brasil. Voyeurs observavam aqueles que carregavam nas costas o peso da sobrevivência, o peso do desprezo social. Tratava-se de alumínio, de todos os tipos e tamanhos, inclusive desses que espalhamos pela cidade. Fotografias, vídeos, flashes iluminavam a grande linha humana e metálica. Os indivíduos eram fortes, e na face um falso sorriso de que tudo daria certo. A vida passa, a fila anda e o riso se desfaz ao olharem para balança; resultado da espera: moedas que cabem na palma da mão não alimenta.



                                                                                                                          Renata Ferreira

sábado, 25 de junho de 2016

The Fundamentals of Caring

A estreia mundial do filme The Fundamentals of Caring aconteceu nesta sexta-feira (24), pela Netflix. Uma road trip, cuja “aventura” difere das quais estamos habituados. O longa é baseado no livro The Revised Fundamentals of Caregiving (2012), de Jonathan Evison. 

Numa narrativa psicológica e frágil, temos um drama com pinceladas de humor. Trevor (Craig Roberts) foi abandonado pelo pai aos 3 anos de idade, período no qual recebeu o diagnosticado de Distrofia muscular de Duchenne, uma doença hereditária, degenerativa e sem cura. Assim, Trevor vive numa cadeira de rodas, e faz tratamento para amenizar os sintomas da doença. Opta pela resignação, mesmo podendo ser mais ativo. Rotina: quarto, sala, banheiro, dois weefles e uma salsicha todos os dias, até conhecer Ben (Paul Rudd).  Esse estava paralisado emocionalmente, com a maior perda da sua vida[ não se preocupem, não darei Spoiler]. Perda essa que não sai da mente; flashs memorialísticos o desestabilizam e tiram o ar; além dessa tristeza, não consegue aceitar o divórcio.

 Em crise, Ben abandona a carreira de escritor e inicia um curso de acompanhante. Lá, mandamentos considerados fundamentais para lidar com os pacientes são ensinados: “pergunte, escute, observe, ajude e pergunte de novo. Pois a regra fundamental ao cuidar de alguém é dar assistência e não se apegar demais”. Trevor, seu primeiro paciente, demonstra, de cara,  rudeza e desrespeito, mas isso não dura muito e num dado momento a amizade acontece.  

Trevor guardava em seu quarto um mapa com várias anotações de lugares que gostaria de visitar, mas que nunca tentou, pois além do medo, tinha  uma mãe que acreditava que ele morreria no caminho. Com o apoio de Ben, os dois fazem a tão sonhada viagem, um passeio simples, um roteiro um tanto sem noção, baseado em programas toscos que Trevor via na TV, porém libertador para o adolescente.

 No meio do caminho encontram Dot (Selena Gomez), uma jovem que após perder a mãe e não ter um bom relacionamento com o pai, decide encarar a estrada em busca dos sonhos. Os três seguem viagem juntos; Trevor se apaixona por Dot; outros personagens aparecem e novas histórias surgem.


O filme descreve a psicologia de cada personagem e suas complexidades. Mas, o ponto mais sensível liga-se a simplicidades das escolhas. “Nessa jornada, surge um forte elo, mostrando que pequenas coisas podem engrandecer a vida de uma pessoa”.

Apesar da história ser boa, o filme não tem originalidade, um tanto corrido. As emoções e vidas dos protagonistas poderiam ser mais esmiuçadas, desenvolvidas; o espectador sabe o que está acontecendo mas sente falta de cenas que explorem mais a psicologia de cada personagem; faltou informação, faltou entrega, faltou aquele encaixe perfeito entre a história, roteiro e atuação.


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Aproveito o texto para listar alguns filmes de road trip que gosto.;



Renata Ferreira

sábado, 18 de junho de 2016

Crônica: Face to face é coisa do pretérito


Se há alguém que ama estar diante da janela, horas a fio, sem comer, sem dormir, e indo poucas vezes ao banheiro, esse é o homem contemporâneo. Admirável homem novo, cérebro superdotado, uma visão de raio x, uma mistura de The Vision com Superman, capaz de apreciar cada detalhe desse mundão. 

 De quando em quando precisa de óculos, mazela inevitável até para um super-herói, pois a vista cansa, não importa a idade; as óticas lucram (alguém sempre lucra). Como um ser racional e inteligentíssimo viciou-se nessa que deveria ser parceira, mas o aprisiona num presídio de segurança máxima, ou não tão máxima assim, assemelhando-se a um labirinto, cuja maior parte do tempo é desperdiçada. 

Esse homem, espertíssimo, carrega a janela como se fosse um novo membro, implantado em seu corpo pela tecnologia de outros homens, mais sagazes ainda (sempre há alguém mais esperto). Pela manhã, a luz da janela não o incomoda, ao contrário, o despertar é certo; são tantas informações primordiais nas primeiras horas do dia, que a dificuldade para acordar foi para o espaço (que bom, afinal vantagens são essenciais nas escolhas).  O dia começa e o homem segue com a sua melhor companhia: na mesa do café da manhã, no transporte, no trabalho (entre uma advertência e outra, pois não há concentração); no almoço; na volta para casa, defecando, na mesa de jantar etc.

 Veja bem, ainda há muitas opções e tamanhos de janelas, o que é perfeito para adequação e momento. Então, basta o cara escolher uma rede, sentar e viajar. São tantos os benefícios que fica difícil listá-los aqui, em síntese, pode-se dizer que é tudo muito prático e ainda evita a fadiga. 

Exemplos das utilidades e ganhos:   pode-se ter um milhão de amigos que sentam na sua calçada de vez em quando, na verdade raramente; pode-se falar sobre a vida, sobre política e o sobre país, e realmente acreditar que falar por horas,  sem nenhum conhecimento e reproduzindo discursos,   bastará para resolver alguma coisa; pode-se gritar o vocabulário do momento como: impeachment, golpe, direita, esquerda, fascismo, inquérito etc , sem entender bulhufas ; pode-se ser homofóbico, machista, e pedófilo e se sentir protegido e impune;  pode-se tentar resolver problemas familiares; pode-se tentar uma conciliação com a esposa que está na janela do outro quarto; pode-se acenar para os amigos de longa data e acreditar que está presente na vida deles...

 E isso tudo, pasmem, virtualmente. Face to face é coisa do pretérito.

Renata Foli


terça-feira, 17 de maio de 2016

Crônica (vivida) da semana: Insônia



1h25 da manhã, ainda é cedo para falar de insônia? Talvez. Mas o corpo e a mente sabem o que acontecerá nas horas seguintes. Os olhos não fecharão, as olheiras gritarão e a ansiedade acordará. Essa virá sem controle, como criança sem limites. Uma espécie de entidade espiritual que fala através do corpo. Esse, perderá a força, e obedecerá. Comerá o que não deve, beberá o que não aprecia, se drogará com aquele alimento cuja matéria-prima é o cacau, ou ainda, se entupirá com a bebida produzida com os grãos do fruto cafeeiro. Mas a boca continuará seca, seca, entende? Os pensamentos perderão o rumo, como se estivessem num mar revolto, cuja ressaca inundará os olhos e alma. Transbordarei. De quando e quando a entidade (ansiedade) relaxará, momento no qual lerei ou escreverei abobrinhas incolores.  As coisas, mesma as pigmentadas, perderão as cores durante o distúrbio. Logo, peço perdão aos lindos poemas lidos durante a madrugada, ou melhor aos poetas. Bom, neste momento vou perdendo a capacidade de escrever, se é que a tenho. Ela chega. 

Renata Foli